Por Daniela Arcajo, no Yahoo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Constituições são feitas para aguentar investidas autoritárias, mas não há mecanismo que contenha um líder disposto a quebrar as suas regras. A análise é de Renáta Uitz, pesquisadora de direito constitucional que, nos últimos dez anos, debruçou-se sobre o retrocesso democrático que seu país, a Hungria, sofre.
Desde 2018, o mandato de Jair Bolsonaro (PL) é comparado à gestão do primeiro-ministro ultraconservador Viktor Orbán. Na semana passada, as semelhanças entre os dois líderes voltaram a chamar a atenção quando o presidente ventilou a possibilidade de aumentar o número de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) em um eventual segundo mandato.
Orbán lançou mão da estratégia em sua Corte Constitucional. Além disso, mudou a idade de aposentadoria dos juízes –medida que integrou a Constituição em vigor desde 2012, seu terceiro ano no poder. Desde então, diferentes instituições do país vivem ataques.
Um deles foi contra a universidade onde Uitz é professora de direito. A CEU (Universidade Centro-Europeia) precisou mudar sua sede de Budapeste para Viena, na Áustria, após o governo Orbán exigir que universidades estrangeiras mantivessem atividades também em seus países de origem.
“A autodefesa constitucional só funciona se a elite política estiver disposta a aderir às regras do jogo”, afirma a pesquisadora, que também é codiretora do Instituto da Democracia da CEU.
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Folha – Na semana passada, Bolsonaro disse que vai analisar o aumento do número de membros no Supremo Tribunal Federal brasileiro após as eleições, em um eventual segundo mandato. Como isso aconteceu em seu país?
Renáta Uitz – Na Hungria, além do Supremo Tribunal, há um Tribunal Constitucional. E para aparelhá-lo, mudaram as regras de eleição dos membros e do presidente do tribunal. Antes, o presidente era eleito pelos seus pares; agora, é escolhido pelo Parlamento.
Além disso, em um momento crítico, mudaram a idade de aposentadoria dos juízes para garantir que os nomeados leais ao primeiro-ministro pudessem servir por mais tempo.
Essa não é, obviamente, a única maneira de aparelhar um tribunal. Mas é um caminho difícil de contestar, especialmente diante de fóruns internacionais. É realmente difícil para a sociedade civil e a oposição argumentar que, embora sejam mudanças cosméticas, na prática, o tribunal está aparelhado. Contanto que um líder como Orbán possa contar com a reeleição, ele tem todo o tempo em sua mão. Ele pode simplesmente eliminar alguns dos juízes de quem não gosta, não precisa demiti-lo por meio de processos disciplinares, não precisa ameaçá-lo.
Folha – A senhora acha que a democracia morreu na Hungria?
Renáta Uitz – Se você me perguntar, vou dizer que a democracia morreu quando se tornou impossível que a oposição ganhe uma eleição. Se você perguntar ao primeiro-ministro Orbán, ele dirá que a democracia está bem. Há eleições regulares e há um partido, o dele, que previsivelmente sempre consegue a maioria no Parlamento.
A resposta à sua pergunta depende na sua crença na democracia constitucional –e não apenas em um sistema da maioria.
Folha – Qual foi o ponto de não retorno nos últimos anos?
Renáta Uitz – O principal ponto de virada foi antes das eleições de 2014, quando uma reforma eleitoral tornou significativamente mais difícil para a oposição concorrer às eleições. Foi uma estratégia para consolidar o poder e garantir as futuras vitórias eleitorais de Orbán e seu partido.
Folha – A senhora vê similaridades entre a situação húngara e a situação brasileira?
Renáta Uitz – Há semelhanças no estilo de liderança dos dois. Há uma boa razão pela qual Orbán foi convidado à posse de Bolsonaro. Mas são sistemas políticos diferentes.
O Brasil é presidencialista com um Congresso que poderia funcionar como um contrapeso ao presidente –embora, com as recentes eleições, a composição do Legislativo tenha mudando drasticamente. A Hungria é um sistema parlamentar. Se houver maioria de dois terços no Parlamento, como Orbán conseguiu de novo, governa.
Portanto, os sistemas constitucionais são diferentes, mas há semelhanças nos estilos políticos. E há indicações muito claras de que Orbán e Bolsonaro se consideram importantes aliados no cenário político global.
Folha – Em 2018, partidos e políticos viviam uma grande crise no Brasil, e o país passava por problemas econômicos. Como era o cenário quando Orbán assumiu?
Renáta Uitz – O cenário era surpreendentemente semelhante. A eleição de Orbán foi precedida por dois mandatos do governo socialista. O segundo foi especialmente caótico. Havia uma bagunça econômica, e uma vida confortável parecia cada vez mais distante da população.
Certamente não foi tão teatral quanto a Operação Lava Jato, nem tão dramático quanto um impeachment e um ex-presidente indo para a cadeia. Mas havia uma sensação de caos e de perda de confiança na elite política. A esquerda não entendeu que precisava reinventar a linguagem e pensar em promessas que mobilizassem o eleitorado. É crucial enfatizar que, em 2010, o Fidesz [partido de Orbán] ganhou uma eleição livre e justa. A questão é tudo o que aconteceu depois disso.
Folha – No primeiro turno, Lula ficou em primeiro lugar, mas Bolsonaro teve uma votação expressiva. Em El Salvador, Nayib Bukele tem uma popularidade recorde. Por que isso acontece?
Renáta Uitz – Eles apostaram em uma política de vitimização. Fazem as pessoas acreditarem que estão ameaçadas por forças das quais somente esse líder forte, não ortodoxo, pode salvar. Essa é uma estratégia de Bolsonaro.
Ele fala com as pessoas nas redes sociais e ameaça jornalistas porque mediam e cortam seu acesso direto ao eleitorado. Ele gosta de ameaçar sociedade civil, juízes, todos que possam estar em seu caminho. Especialmente no contexto brasileiro, eu acho crucial olhar para a questão da violência física, que a gente não vê na Hungria ou na Europa. O que me preocupa realmente são as técnicas de intimidação que serão usadas contra os apoiadores de Lula.
Folha – A senhora costuma dizer que líderes autoritários atuais usam a Constituição para se perpetuar no poder. Como isso funciona na prática?
Renáta Uitz – Tanto a Polônia quanto a Hungria são famosas pelas práticas iliberais por meio da formulação de regras legais cuidadosamente elaboradas.
A grande diferença é que o governo húngaro aprovou uma nova Constituição formalmente, enquanto, na Polônia, o governo do PiS (Lei e Justiça) não tem a maioria para emendar a Constituição. Então eles mexeram no Tribunal Constitucional para que os juízes aprovassem qualquer reforma legal, mesmo quando a Constituição polonesa dizia exatamente o oposto. Nesse cenário, quanto mais o tempo passa, menos a sociedade civil confia nos meios tradicionais para defender os direitos das minorias que foram demonizadas por esses regimes.
Folha – As Constituições não deveriam ter mecanismos para conter esses ataques?
Renáta Uitz – As Constituições têm esses mecanismos, mas o governo Orbán está cheio de bons advogados. Eles fizeram revisões constitucionais e garantiram que esses mecanismos fossem removidos do texto ou perdessem seus efeitos.
Não importa que tipo de instrumento constitucional se tem contra a tirania. No fim das contas, as sentenças dos tribunais terão de ser executadas pelo Executivo. A autodefesa constitucional só funciona se a elite política estiver disposta a aderir às regras do jogo. No momento, estamos enfrentando líderes que querem mudar essas regras para permanecer no cargo contra todas as probabilidades.
Folha – Nós associamos regimes autoritários a prisões, assassinatos e tortura. Como é a opressão em regimes como o de Orbán?
Renáta Uitz – Se você vier a Budapeste hoje, será muito agradável. O centro é bem cuidado, há bons cafés, não se vê tanques ou policiais armados.
A oposição e os dissidentes não são perseguidos ou processados. A polícia não está mantendo as pessoas sob a mira das armas. No momento, temos grandes protestos de estudantes e professores em praça pública. Mas as mensagem dos manifestantes simplesmente não são ouvidas, é um grito para o abismo.
Uma lição importante para o Brasil vem das Filipinas. Lá, o presidente conseguiu ganhar com uma campanha nostálgica pela ditadura do país, enquanto há afetados pelo regime vivos. A ditadura militar no Brasil também não foi há tanto tempo. A gente subestima o poder das mídias sociais e das mentiras sobre os benefícios de uma ditadura. E acho isso particularmente alarmante no contexto brasileiro.
Folha – A senhora é professora na CEU (Universidade Centro-Europeia), que precisou mudar a sede para Viena após uma ofensiva de Orbán. Como foi viver isso?
Renáta Uitz – Àquela altura, eu estava em Budapeste e, francamente, não podíamos acreditar que um governo democraticamente eleito não mudaria de ideia após protestos em massa e cartas de dezenas de vencedores do Prêmio Nobel. Eles não mudaram de ideia porque não precisavam desses votos para se manter no poder. Foi absolutamente surreal.
O que vemos desde então é uma reforma radical no ensino superior do governo húngaro. E tenho plena consciência de que isso é algo que também está na agenda brasileira. No início, especialmente para os acadêmicos que estão nas universidades, ouvir que um regime como esse quer reformar o ensino superior soa inconsistente, porque essa é uma retórica antielitista, anti-intelectual.
Mas Orbán percebeu que ele pode muito bem criar centros de educação de elite e transformar as universidades em um braço do governo, o que dá mais resiliência ao seu regime. Tudo é feito de maneira muito sofisticada. Não se limita à destruição da universidade. Há potencial para um próximo passo, que é a formação da nova elite que servirá a esse governo no funcionalismo público, no Judiciário e em profissões que sustentam o regime.
Folha – A senhora acha que a sociedade civil poderia ter feito algo para impedir?
Renáta Uitz – A sociedade civil húngara é extremamente ativa e muito habilidosa para tomar medidas legais. Seria muito pior se não tivessem feito esse trabalho. Mas a sociedade civil não é um partido político. Se os partidos democratas perdem uma eleição, a sociedade não poderá fazer esse trabalho, porque tem uma função muito diferente. Eu realmente acredito que a sociedade civil fez tudo o que era possível na Hungria e também na Polônia. Mas, em última análise, não são partidos políticos.
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Renáta Uitz, 49 – Codiretora do Instituto da Democracia da CEU (Universidade Centro-Europeia) desde fevereiro deste ano, Renáta Uitz já coordenou o programa de direito constitucional comparado na mesma instituição, onde leciona desde 2001
Renáta Uitz. Foto: Adrián Zoltán